Depois de acionar por sete vezes a função
soneca no despertador, finalmente consegui me levantar, chegaria atrasado ao
trabalho mais uma vez, não que isso realmente importasse, já que meu horário de
labor era flexível. Desde que cumprisse minhas dezesseis horas diárias, não
haveria problema. Vesti o uniforme e apanhei meu café da manhã. Levei uns dois
minutos para escolher o sabor, no fim, acabei pegando a refeição com sabor de
frango, espremi o tubo flexível e engoli todo o creme. Não sei por que sempre
perdia tanto tempo escolhendo os sabores, no final das contas todos eles tinham
o mesmo gosto insosso de pomada para assadura.
Entrei
na cápsula de transporte pneumático, coloquei a máscara de oxigênio e apertei o
botão. A viagem pelos tubos, do apartamento até o trabalho, levava exatos
dezesseis minutos, tempo esse que eu costumava aproveitar para tirar um breve
cochilo. Os cientistas do governo afirmavam que quatro horas de sono eram
absolutamente suficientes para que o corpo humano se recuperasse de um dia de
trabalho, ficando apto para a próxima jornada. Eu jamais acreditei em quem
trabalhasse para o governo.
A
cápsula saía do meu quarto e me deixava dentro da sala onde eu trabalhava. Nas
próximas dezesseis horas seriam apenas os novos mortos e eu, ninguém mais.
Talvez esteja difícil compreender de que diabos eu estou falando, desculpe-me
pela indelicadeza e deixe que eu me apresente: meu nome é Wagner, moro na
cidade de Belo Horizonte e sou maquiador de cadáveres, pelo menos essa é a
versão oficial. E mais um detalhe, não sei em que época você está lendo este
relato, mas eu vivo no ano de 2025.
O
objetivo final do meu trabalho, na realidade, não se distingue totalmente do
que consta nos registros oficiais. Eu me formei no curso técnico em computação
gráfica e modelagem tridimensional há cerca de seis anos atrás. Como
atualmente, todo o ensino é feito à distância, ninguém sabe minha verdadeira
formação. No dia seguinte à chegada do meu diploma pelo correio magnético, dois
oficiais da “A União” bateram à minha porta, ofereceram-me um emprego, desde
que eu concordasse em jamais fazer perguntas. O salário era atrativo e eu
estava desempregado, obviamente aceitei a oferta.
Minha
função de fato é recriar o morto dentro de um ambiente virtual e dar a ele a
melhor aparência possível. As famílias velam o corpo acreditando que seja real,
quando o que veem não passa de um holograma projetado com absoluta perfeição.
Neste momento você deve estar se perguntando: O que acontece com o verdadeiro
corpo? Oficialmente, eu não faço a mínima ideia, não consta no meu contrato e
não sou autorizado a ter conhecimento a nesse nível de informação. Mas,
na verdade, todos os defuntos frescos em estado recuperável se convertem em
força de trabalho para A União. Os cientistas do governo chegaram à conclusão
que ciborgs são bem mais duráveis e
fáceis de fabricar que robôs trabalhadores. Dito isso, apostaria uma grana que
você está especialmente curioso para saber como eu sei de tudo isso. Não se
preocupe, a resposta é deveras simples, apesar de ninguém; além de mim; ter
conhecimento dela. EU SOU UM HACKER!
Meu
trabalho é inteiramente secreto, e fui escolhido justamente por ser um sujeito
solteiro, sem parentes vivos e, notadamente, sem vida social. O que nem mesmo o
governo conseguiu descobrir é que eu sempre fui muito mais que isso. Quando eu
era uma criança, com apenas sete anos de idade, o Governo Federal, hoje chamado
apenas de “A União”, classificou o acesso à internet por civis, sem autorização
expressa expedida pela autoridade máxima do país, como crime. Todos os pontos
de acesso não pertencentes ao governo foram destruídos. Porém, minha
curiosidade nasceu cedo. Aos dez anos eu já era capaz de encontrar furos no
sistema e acessar a rede por meio de uma tomada de energia elétrica. Hoje, com
vinte e dois anos, eu posso entrar em qualquer computador dentro do país.
A
jornada laboral a qual sou submetido a cumprir foi calculada por especialistas,
as dezesseis horas seriam, supostamente, o tempo ideal para “maquiar” doze
corpos. No entanto, sou capaz de concluir todo o trabalho de um dia com
aproximadamente duas horas. O que eu faço nas quatorze horas restantes? Eu
navego! E quando se invade sistemas secretos de um governo totalitário, você
descobre muita coisa a qual não deveria nem sonhar em saber.
Se
eu tenho medo de ser apanhado? Mas que tipo de pergunta é esta? É claro que eu
não tenho medo. Como meu trabalho é totalmente secreto, não há câmeras a me
vigiar. Minha sala é um espaço de seis metros quadrados, sem janelas nem
portas. Há apenas a passagem para o tubo de transporte e dois compartimentos,
uma para a entrada dos cadáveres e outro para saída. Pelo primeiro eu recebo um
corpo e um cartão de memória criptografado, faço meu trabalho, salvo no cartão
e devolvo o pacote pelo segundo compartimento.
Mensalmente
meu salário é creditado em uma conta eletrônica. A moeda atual é a “samba”,
hoje um samba equivale a mais ou menos sete dólares. O dinheiro físico foi
extinto em 2015, e todas as transações passaram a ser feitas em terminais
especiais, instalados no interior dos prédios oficiais.
Nos
dias de hoje, não há muito com o que gastar, a não ser que você tenha muito
para gastar. A maioria das pessoas ganha menos que o suficiente para se
sustentar, então não pensam em consumo. O que recebo, no entanto, é mais que
suficiente para o meu sustento, mas não sou do tipo consumista, todo o
excedente eu guardo, estou economizando para comprar um dormitório no nível
treze. Com o crescimento industrial no Brasil, as cidades foram divididas em
níveis. Aqui, em Belo Horizonte, são treze. O nível um é o mais baixo, afixado
por sobre o solo, os seguintes são empilhados uns sobre os outros, como cidades
construídas sobre cidades. O treze é o único de onde se pode ver a luz do sol,
e apenas os mais abastados tem condições de morar lá. Eu não vejo a luz do sol
desde que eu tinha quinze anos.
Não
posso dizer que meus dias de trabalhos eram penosos e cansativos, mas, vez ou
outra, o sono me acometia de forma agressiva, e quando chegava ao último morto,
já não me importava em que tipo de pessoa eu estava a reconstruir. Neste dia,
minha lista foi bem diversificada. Comecei o dia com uma jovem asiática,
seguida de uma coroa de cabelos loiros, três crianças, um hermafrodita de madeixas
rubras, duas morenas, uma idosa albina e três homens negros de meia idade.
Quando o último cadáver do dia me foi entregue, eu dividia meu tempo entre
pequenos cochilos e bocejos que arrancavam lágrimas de meus olhos.
A
esteira saiu pelo compartimento e deslizou suavemente até ficar de frente para
mim. O lençol cobria o defunto até a cabeça, estranhei, já que normalmente o
rosto já chegava descoberto, mas não fazia diferença, de qualquer maneira eu
teria que remover o lençol e contemplar o corpo nu do morto, ainda que a visão
não fosse das mais agradáveis. Depois de algum tempo vendo corpos desnudos
todos os dias, a nudez passa a ser uma coisa natural, até mesmo banal, e isso
fez a pornografia da internet perder totalmente a graça.
Faltavam
sessenta e oito minutos para o fim da minha jornada, decidi matar o tempo com
um velho jogo de pinball no
computador. Em menos de vinte minutos fiz o máximo de pontos que o programa
comportava e me entediei. Levantei da cadeira e caminhei letárgico até a
esteira. Cocei os olhos que insistiam em se fechar. Bocejei mais uma vez e o líquido
lacrimal escorreu nas bochechas, enxuguei o rosto e assim que minha visão
voltou a ter foco arranquei o lençol com um só puxão. Quando os restos mortais
se revelaram, meu queixo foi parar no chão. Senti o corpo tremer, o sangue
gelou, minha pele empalideceu, e por alguns segundos meu coração parou. Eu
desmaiei.
Quando
eu despertei, antes mesmo de abrir os olhos completamente, senti uma dor
excruciante em minha cabeça, me esforcei para manter as pálpebras erguidas,
levantei ainda zonzo e com a visão turva. Fitei o corpo sem vida sobre a
esteira metálica e o espanto se repetiu. Ao contrário do que pensei, o que
havia visto não era uma ilusão, uma falsa impressão ou um delírio febril. Era
real. Busquei a cadeira com as mãos sem desgrudar os olhos do defunto estendido
ao meu lado. Sentei-me e segurei o metal gélido da maca. Aproximei meu rosto do
morto para ter certeza do que eu via. Não arrisquei tocá-lo, mas estava certo
de que aquilo era o que eu imaginava. Minha vida jamais seria a mesma, disso eu
tinha certeza.
Os
“maquiadores” eram escolhidos de forma que um morto jamais fosse “maquiado” por
algum conhecido, para isso devassavam a vida de cada um de nós antes de nos
contratar, mas eu conhecia bem aquele rosto pálido e gélido que estava à minha
frente.
Pois aquele rosto...
...era idêntico ao meu.
Baixe em pdf aqui.
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Olá Samuel, vim fazer uma visita ao seu blog e já estou seguindo também.
ResponderExcluirParabéns!!!
http://leootaciano.blogspot.com.br/
Olá,
ExcluirObrigado pela visita e volte sempre.
Abraço
Uau...Me senti impactada xD
ResponderExcluirEsses contos sempre me deixam chocada com o jeito que são descritos e eu sabia que era ele,não sei porque mas sempre é para chocar a pessoa com a situação xD
Você gostou? É meio louco e um pouco sem sentido, né?
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